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quarta-feira, 30 de julho de 2008

66. Os aromas de Pessoa


Com o impressionante volume de merchandising que se faz de Fernando Pessoa, é curioso que ninguém se tenha ainda lembrado de criar uma colecção de cinco perfumes.
Os quatro heterónimos deveriam ser bastante diferentes entre si nas notas de cabeça e de coração, com uma nota de fundo comum que seria, no ortónimo, especialmente pesada.

Imagino o frasco de Alberto Caeiro: um vidro branco, transparente e liso, cilíndrico como um tronco de bétula jovem, tampa de madeira escura; o líquido cor de palha clara.
Nas notas de cabeça, hortelã-da-ribeira acabada de calcar e uma sugestão de bergamota; no coração, urze, rosmaninho e outras rescendências do início da noite mediterrânica; fundo almiscarado.

Ricardo Reis teria um frasco de vidro grosso, marfim opaco, redondo e simétrico, com 12 cms. de altura. Um "R." pintado a borgonha. Impossível descortinar a cor do líquido.
À cabeça, lírios no ponto de murchar; no coração, pêssegos, cedro, soalho gasto, folhas de plátano secas; ao fundo, tabaco frio e tinta da china.

Vejo Álvaro de Campos num frasco metálico, totalmente irregular. A preto, estilizada, uma assinatura ilegível. Nas notas de cabeça, avulta a fuligem e a limalha de ferro, com uma sugestão de limões gelados; no coração, couro novo, ópio e sisal; para o fundo, poeiras cósmicas e óleo de barcos.

Bernardo Soares desponta com café e canela; coração de alpaca e papéis velhos; sem notas de fundo próprias.

Mas Pessoa ortónimo?

terça-feira, 4 de março de 2008

26. Excertos de uma divagação: Crime e Literatura*


(...) O fascínio pelo crime enquanto ficção (ou realidade romanceada) e pela vitória do Mal aí contida parece antes residir no desejo de presenciar. Num certo voyeurismo, portanto. E, neste aspecto, a atracção do espectador pelo crime literário não é muito diferente da que o leva a querer experimentar o crime real através dos jornais e da assistência aos julgamentos nos tribunais. Também aí o crime surge como uma história vivida através de uma mediação.
Esta fungibilidade entre o crime real e o crime ficcionado desfaz um outro equívoco: o paradoxo da repulsa / atracção pelo crime não se resolve através da separação entre realidade e ficção. O fosso da realidade pode explicar por que não praticamos um crime, e por que o repudiamos enquanto facto social - mas não explica por que gostamos dele enquanto história.
De onde vem, então, esse desejo de presenciar o crime?

A verdade é que a nossa história começa com um crime.
Quando digo "a nossa história", falo de nós como seres morais. Tomando a Bíblia para além da Fé - como narrativa da nossa civilização -, vemos que a primeira acção humana descrita no Génesis é a desobediência de Eva, ao colher o fruto proibido, provando-o e dando-o a provar a Adão. É seguramente um crime - a violação da única proibição que lhes tinha sido feita pela autoridade suprema, sob pena de morte - e um crime de índole muito particular e perturbadora: Eva e Adão não conhecem ainda o Bem e o Mal, mas já têm consciência da proibição e do dever de obediência. E por isso, ignorantes do Mal mas conscientes do dever e da proibição de violá-lo, são punidos com a Queda.
Ora o crime original que nos degradou para a condição de mortais instituiu-nos também como seres morais, salvando-nos da ignorância e instaurando um princípio de liberdade.
Esta marca inaugural do crime mostra que se trata de uma noção concebível para lá do Bem e do Mal e que, nessa medida, é sempre um acto de libertação indesejado pelo poder, uma ruptura com uma ordem qualquer. Porém, quando a acção passa a ter um parâmetro ético-normativo, o crime é proibido e o cidadão conformista só pode readquirir aquela liberdade inicial através de sucedâneos onde reencontra a possibilidade de transgressão (...).
*Palestra na Faculdade de Direito da U. C., 4/03/2008; gravura de A. Dürer, 1504