(...) O fascínio pelo crime enquanto ficção (ou realidade romanceada) e pela vitória do Mal aí contida parece antes residir no desejo de presenciar. Num certo voyeurismo, portanto. E, neste aspecto, a atracção do espectador pelo crime literário não é muito diferente da que o leva a querer experimentar o crime real através dos jornais e da assistência aos julgamentos nos tribunais. Também aí o crime surge como uma história vivida através de uma mediação.
Esta fungibilidade entre o crime real e o crime ficcionado desfaz um outro equívoco: o paradoxo da repulsa / atracção pelo crime não se resolve através da separação entre realidade e ficção. O fosso da realidade pode explicar por que não praticamos um crime, e por que o repudiamos enquanto facto social - mas não explica por que gostamos dele enquanto história.
De onde vem, então, esse desejo de presenciar o crime?
A verdade é que a nossa história começa com um crime.
Quando digo "a nossa história", falo de nós como seres morais. Tomando a Bíblia para além da Fé - como narrativa da nossa civilização -, vemos que a primeira acção humana descrita no Génesis é a desobediência de Eva, ao colher o fruto proibido, provando-o e dando-o a provar a Adão. É seguramente um crime - a violação da única proibição que lhes tinha sido feita pela autoridade suprema, sob pena de morte - e um crime de índole muito particular e perturbadora: Eva e Adão não conhecem ainda o Bem e o Mal, mas já têm consciência da proibição e do dever de obediência. E por isso, ignorantes do Mal mas conscientes do dever e da proibição de violá-lo, são punidos com a Queda.
Ora o crime original que nos degradou para a condição de mortais instituiu-nos também como seres morais, salvando-nos da ignorância e instaurando um princípio de liberdade.
Esta marca inaugural do crime mostra que se trata de uma noção concebível para lá do Bem e do Mal e que, nessa medida, é sempre um acto de libertação indesejado pelo poder, uma ruptura com uma ordem qualquer. Porém, quando a acção passa a ter um parâmetro ético-normativo, o crime é proibido e o cidadão conformista só pode readquirir aquela liberdade inicial através de sucedâneos onde reencontra a possibilidade de transgressão (...).
*Palestra na Faculdade de Direito da U. C., 4/03/2008; gravura de A. Dürer, 1504
Esta fungibilidade entre o crime real e o crime ficcionado desfaz um outro equívoco: o paradoxo da repulsa / atracção pelo crime não se resolve através da separação entre realidade e ficção. O fosso da realidade pode explicar por que não praticamos um crime, e por que o repudiamos enquanto facto social - mas não explica por que gostamos dele enquanto história.
De onde vem, então, esse desejo de presenciar o crime?
A verdade é que a nossa história começa com um crime.
Quando digo "a nossa história", falo de nós como seres morais. Tomando a Bíblia para além da Fé - como narrativa da nossa civilização -, vemos que a primeira acção humana descrita no Génesis é a desobediência de Eva, ao colher o fruto proibido, provando-o e dando-o a provar a Adão. É seguramente um crime - a violação da única proibição que lhes tinha sido feita pela autoridade suprema, sob pena de morte - e um crime de índole muito particular e perturbadora: Eva e Adão não conhecem ainda o Bem e o Mal, mas já têm consciência da proibição e do dever de obediência. E por isso, ignorantes do Mal mas conscientes do dever e da proibição de violá-lo, são punidos com a Queda.
Ora o crime original que nos degradou para a condição de mortais instituiu-nos também como seres morais, salvando-nos da ignorância e instaurando um princípio de liberdade.
Esta marca inaugural do crime mostra que se trata de uma noção concebível para lá do Bem e do Mal e que, nessa medida, é sempre um acto de libertação indesejado pelo poder, uma ruptura com uma ordem qualquer. Porém, quando a acção passa a ter um parâmetro ético-normativo, o crime é proibido e o cidadão conformista só pode readquirir aquela liberdade inicial através de sucedâneos onde reencontra a possibilidade de transgressão (...).
*Palestra na Faculdade de Direito da U. C., 4/03/2008; gravura de A. Dürer, 1504
Um comentário:
Delicioso texto!....e a lecture foi ainda melhor para os privilegiados que la estiveram! Deves publicar na integra o artigo pois é muito bom mesmo, e prova que afinal existe um ponto de contacto entre arte e direito hehehe....Cheers :)
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